Reféns da seca XVI | |
Seca grande o povo sertanejo sente quando o chão racha de repente e não há como juntar os pedaços novamente. É também quando fica seco até um pedaço de chão que antes era um rio, um barreiro ou um açude e quando se olha até onde a vista alcança e o que se vê é o sol, fustigando feito lança.
É
quando não tem sapo coaxando, quando os grilos não fazem serenata,
quando as plantas não brotam, quando o agricultor deixa de acordar
cedinho com a enxada nas costas. É quando mandacaru vira comida de gado,
o milho e o feijão somem da mesa e o que resta apenas é um pedaço de
rapadura para enganar a barriga.
“Não
sei ler nem escrever, minha vida é lida na roça, meu lápis é uma
enxada, desde novinho fui roceiro e cá estou sobrevivendo a mais uma
tragédia”, diz, com jeito de poeta, o agricultor Damião Silva, 52 anos,
caminhante do Sertão de vidas secas. Mas não um caminhante solitário.
No
chão batido de Verdejante, município encravado entre Salgueiro,
santuário das secas, e Serra Talhada, terra de Virgulino Ferreira, o
Lampião, Damião, que se aposentou aos 40 anos por invalidez – perdeu uma
das mãos num acidente com um facão – vai escapando da maior seca dos
últimos 50 anos no Sertão porque é forte, como todo sertanejo.
Ontem,
ao entardecer, ele foi encontrado levando toda a prole – a mulher e
quatro filhos – numa carroça de burro com três cães vira-latas. “A seca
queimou 10 hectares que plantei de milho e feijão, só me restou este
burrinho e umas galinhas no quintal, mas a gente vai sair dessa porque
Deus é grande e poderoso”, diz.
“No
sertão, quem é rico ainda de jumento, quem é pobre anda a pé”,
cantarolou Luiz Gonzaga, imortalizando a miséria de terras secas. Cem
anos depois de Vidas Secas, onde brinquedo de gente pequena era osso de
boi, Joyce, de nove anos, encontra no lixo tampinhas de garrafas de
plástico e transforma em realidade o brinquedo que viu na loja, mas os
pais não tiveram dinheiro para comprar.
Carinha
de anjo, meiga e inteligente, Joyce mora num distrito de nome charmoso,
de gente fidalga: Montevidéu, que não é a capital do Uruguai, mas uma
pequena vila, de duas ruas, uma delas já quase no Ceará, porque se
confunde com a cidade de Penaforte, pertencente ao Estado vizinho.
Seu
lápis não é a enxada, como disse Damião de Verdejante. Encontrou o
caminho das letras e do futuro numa escolinha ali bem perto, aonde vai a
pé e faz planos para um futuro promissor, distante das plagas onde
vive, onde a seca matou a esperança de toda a sua gente. “Gosto de
estudar e sonho em ser gente na vida”, reage, mostrando firmeza e
esperança.
Deixamos
para trás a nova geração sertaneja simbolizada por Joyce e penetramos
no mundo do passado, de gente que já viveu muito em terras euclidianas,
que tem muitas estórias para contar, que nos tempos de hoje resta apenas
o consolo de passar a experiência para os que estão despertando para a
vida.
É
o caso do quase centenário Raimundo Wenceslau da Silva, que chegou
inteirão aos 95 anos na emblemática Conceição das Creoulas, metade
quilombola, metade terra de índio atikum, em Salgueiro. Metade porque a
comunidade é dividida entre negros e índios, que não se entendem, vivem
em permanente conflito.
Conflitos
que vão pela posse da terra até mesmo ao direito de receber uma cesta
básica enviada por almas generosas para matar a fome de muita gente por
lá. “Seu” Raimundo é índio atikum, trabalhou na roça a vida inteira, tem
sete filhos e muita estória que não saem da sua memória ainda
privilegiada.
“Já
ouvi por ai gente dizendo que esta seca está sendo maior do que a de
1932, mas não pode ser comparada não, meu senhor. Vivi a de 32 e estou
vivendo esta. A de 32, o povo morreu de verdade, de fome e abandono.
Agora, não estou vendo o povo morrer. Tou vendo, sim, o gado não
escapar, por falta de capim e água também”, desabafou.
“Seu”
Raimundo também não tolera as provocações dos quilombolas que em
Conceição das Creoulas ganharam o direito do acesso a terra. “Essas
terras aqui foram habitadas desde a sua origem por nós, índios.
Inventaram esse negócio de quilombola para tirar os nossos direitos e
roubar as nossas terras”, diz.
Avanir
Maria da Silva, índia atikum de Conceição das Creoulas, cansou de ser
explorada pelos quilombolas em Conceição das Creoulas e deixou a roça
para tentar a vida de manicure. E para isso está fazendo um curso na
Associação dos Quilombolas. Lá, numa parceria com o Governo do Estado, a
entidade oferece um curso por três meses.
“Vou
tentar mudar de vida”, afirma, referindo-se à profissão de manicure.
Nascida na aldeia Garrote, Avanir mora na cidade desde 1981, mas nunca
se conformou com o tratamento dado pelo Governo aos índios, segundo ela
bem diferente do que é dado aos quilombolas. “Nós, índios, sofremos uma
tremenda discriminação. Aqui, só se olha para os negros”, observa.
O
Governo que discrimina os índios em Conceição das Creoulas é o mesmo
que levou o pecuarista Manoel Ferreira de Oliveira, aos 78 anos, a uma
depressão que parece sem fim. Tudo porque as obras da Transposição
passaram por cima da sua fazenda, destruíram o açude que abastecia a
cidade e o seu rebanho, e o DNOCS não pagou a indenização.
Manoel,
que viveu 75 anos na roça, tinha 50 cabeças de bovinos, cabras, ovelhas
e cavalos de raça. Deitado numa rede, onde mata o tempo, vai fluindo a
sua dor. “Tem hora que dá vontade de tocar fogo em tudo que restou, de
tristeza, de desgosto e depois morrer”, revela.
Com
os seis filhos, o velho pecuarista se transferiu da fazenda para uma
casa em Penaforte, no Ceará, e da sua rede diz que agora só sai para a
eternidade. “Não tenho mais força para viver, vou levar o resto da vida
aqui nessa rede velha”, afirmou.
Bem
distante de Montevidéu, a família do garoto Manoel Francisco Silva
Neto, o “Netinho”, de sete anos, enfrenta as agruras da justiça todos os
dias, porque ocupa uma área de invasão no projeto de irrigação
Bebedouro, em Petrolina. O pai, a mãe e mais sete irmãos já chegaram na
invasão Mundo Novo, como batizaram, expulsos de outra área ordenada pelo
MST.
Netinho
está fora da escola, não sabe ler, não tem brinquedos para se divertir
com os irmãos. Seu único entretenimento nos últimos dias tem sido cuidar
de um cabrito, seu xodó, a quem dá carinho e atenção durante todo o
tempo que Deus dá. “Ele é meu companheiro, cuido como se fosse um
irmão”, confessa.
Como
todo garoto pobre do Sertão, Netinho tem os pés no chão e vergonha de
só comer feijão, quando tem. É riso tímido, porque fala errado, mas faz
pirraça porque é um menino comol qualquer um da sua idade, que brota
poesia cantada. Netinho é castigo no sertão, mas quem sabe um dia não
será lição se escapar da morte severina. |
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Escrito por Magno Martins, às 08h15 |
sexta-feira, 23 de novembro de 2012
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